domingo, 2 de agosto de 2009

Narradores de Javé: uma fábula que vai ao fundo da memória genuína e brasileira.

Como todo grande filme, Narradores de Javé nos envolve numa trama bonita, poética e irreverente. E traz assuntos polêmicos, atuais e dignos de serem discutidos.

Alguns clichês do cinema brasileiro como filmar o Nordeste, fazer cenário em uma pequena cidade com seus tipos e tratar da desigualdade social são alguns aspectos presentes nesse filme. Mas, são trabalhados de maneira inteligente, irônica e, ao mesmo tempo, sutil e encantadora. Poderia caracterizar Narradores de Javé como sendo um filme espetacular. Só mesmo assistindo para saber.

É o que se pode imaginar desde o apresentar dos créditos iniciais são: uma vírgula imperadora e camaleônica surge na tela e uma trilha musical irreverente dá seu ar e graça.Logo, a vírgula teimosa vai virando os dois pontos já conhecidos, sobretudo pelos escolarizados. Depois vem um ponto final floral que, nos trejeitos melódicos, nos nomes inaugurando-se na tela e no olhar festivo do espectador vira ideograma japonês vermelho e babilônico. Surgem então outros nomes e reticências dinâmicas, como bolas de bilhar se alternando, parecem anunciar o que virá: um jogo do destino feito de histórias pinceladas de nossa própria vida que nos une e nos congrega silenciosamente.

Tudo começa, nesse jogo destinado a espectadores felizes, com um personagem vivente e anônimo, que perde um barco e sua viagem. E nessa parada da vida, nessa perda, nesse novo lance, fica à margem de outra viagem, outro jogo a ser vivido: a Saga dos Narradores de Javé.

Nesse ponto de espera uma das frases ditas por um dos personagens -eu mesmo, que não sou das letras vou contar um causo e acho que vocês não vão querer ouvir- inicia a nova viagem: embarcamos todos na trama do filme, mergulhamos nos tempos: o atual, o passado e o imaginário. E nas vidas distintas dos personagens, os moradores de Javé, vilarejo encravado no sertão nordestino, um povoado que parece ainda se situar na Idade Média em tempos de globalização e modernidade.

E na espera do outro barco, do novo dia, vamos revivendo a história desse lugarejo em múltiplos flasbacks que revisitam os íntimos de seus acontecimentos, bordadas pelos depoimentos das memórias de seus moradores. Ficamos orgulhosos de usufruir o trabalho dos atores nas suas mais singelas representações.

Javé, lugar iluminado pelas lembranças e relatos, pelos testemunhos e vivências vê-se subitamente carente de importância, pois seus moradores se apercebem que a riqueza de suas histórias foi esquecida pelo oficial e pelas letras. Pior: prestes a sucumbir, se vêem ameaçados de verem a igreja e seu campanário desaparecerem sob as águas avassaladoras pretendidas pelo progresso tão imperativo e desalmado, na forma de uma represa em e de uma usina hidrelétrica na região.

Assim, sem tábua de salvação, resolvem lutar para impedir o que está por acontecer. Do contar e recontar os causos da história do vilarejo e do resgate dos feitos dos antepassados eles organizam uma ação possível para dar importância ao lugar. E, sobretudo impedir que um lugarejo como aquele desaparecesse sem deixar nenhum rastro, vestígio ou comprovante de vida ilustre.

Nesse contexto é que entra em cena o personagem Antonio Biá, o carteiro da agência de correios de Javé. Fora rechaçado e tripudiado por todos do vilarejo pelo fato de ter escrito e enviado cartas com histórias mais ou menos inventadas a partir da vida dos moradores, movimentando assim a sede dos correios de Javé que estaria fadada à extinção, por conta da ausência de moradores alfabetizados.

Mediante a nova situação de desespero geral, com a estratégia de contar e escrever o oficial e científico como única perspectiva de salvarem a vida do lugar, Biá passa a ter o poder de escrivão.

Como salvar uma terra apalavrada? Como consignar valor à divisa cantada, da posse de terras passadas de pai para filhos sem o oficial dos cartórios, dos carimbos, dos datados e assinados?

Desse dilema nascem e renascem as diferentes versões das tantas lembranças, vivências e percepções presentes nos relatos dos personagens: a odisséia de Javé.
No emaranhado entre a ficção e a realidade vai se construindo a trama do filme, rica em sensações, paisagens, palavras, imagens, tons e cores da linguagem brasileira. Vai se desenhando o projeto de resgate histórico, através do registro das memórias dos seus moradores, os narradores de Javé.

Da colheita dessa narrativa vivida, lembrada, cantada e falada nascerá o livro da salvação? Vivemos todos os momentos tragicômicos no escurinho do cinema com as nossas maiores esperanças.

Eliane Caffé, a diretora do filme e seu elenco ímpar (José Dumont, Nelson Dantas, Nélson Xavier, Rui Resende, Gero Camilo dentre tantos), nos trazem, com criatividade e sutileza, momentos prazerosos de diversão, cultura, arte e alguns elementos importantes para a nossa reflexão: a questão do progresso, da memória e da relação entre oralidade e escrita. Um ponto alto que nos toca no silêncio da emoção é a importância dos indivíduos na História e o valor da memória na vida de um povo.

Há muitos méritos no trabalho da equipe que realizou o filme. Sabemos que Javé, na realidade é Gameleira, cidadezinha baiana, com cerca de 2000 habitantes e que, pelo menos até a época da filmagem, não sabia o que era coleta de lixo. Sabemos que muitos desses habitantes são figurantes e atores do filme.E que se adentraram com a mais absoluta pureza no processo criativo, juntamente com os atores profissionais, que puderam nesse compartilhamento consignar leveza e frescor na verdade de cada um dos personagens.Sabemos também que o roteiro original foi construído com base nos relatos colhidos em territórios brasileiros, mais precisamente no interior mineiro e baiano: as chamadas expedições da memória.

Outros aspectos importantes podem ser destacados nesse filme, depois de nos aventurarmos de corpo e alma e sexto sentido nesse drama encantador.

Um deles, que me foi caro no papel de espectador e educador, diz respeito ao valor e a importância que se dá ao que é escrito em detrimento ao que é falado. No desenrolar do filme também vamos nos apercebendo de uma outra questão importante: a interferência do narrador na história. Nos é demonstrado que existe uma história oficial (a dos livros escolares ou oficiais) e a história dos excluídos.Sabemos que uma história escrita num livro pode ser diferente da história verdadeira, pois é contada sob a ótica de quem a escreve ou narra. É como diz Biá num dos momentos de oficializar o que foi cantado e falado por tantas vozes e tempos: uma coisa é o fato ocorrido, outra coisa é o fato escrito. Ao escrever ou narrar um fato, o autor insere nele suas próprias emoções e interpretações, seus sentimentos e experiências de vida, inventa dados e floreia fatos, pois, de acordo com o famoso ditado popular, quem conta um conto aumenta um ponto.

Ficamos nos perguntando se, com o resgate da memória coletiva, através da memória individual, o Vale de Javé ficará livre de seu destino de ser coberto pelas águas do rio. Ou seja, se a estratégia inusitada de escrever um dossiê que documente os "grandes" e "nobres" acontecimentos da história do povoado justificaria a sua preservação. É que na construção deste dossiê o que ocorre é um duelo poético entre os contadores que disputam com suas versões históricas, fantásticas ou lendárias, o direito de configurarem o patrimônio de Javé.

Narradores de Javé é um filme completamente marcado pela memória, uma memória mítica, produzida pela fala, pela narração. Uma memória dinâmica que suscita o jogo da memória coletiva com a individual, do passado com o presente e o futuro, mostrando a importância da relação entre eles.

Um outro aspecto interessante no filme é a relação entre oralidade e escrita. Vale do Javé é uma comunidade essencialmente oral. A divisão e a apropriação de terras, por exemplo, eram cantadas, ou seja, era o canto que legitimava sua posse e não um documento oficial.

Outra questão abordada pelo filme tem a ver com a destruição e os problemas causados pelo progresso. No caso, a destruição de um grupo, da memória e da cultura de um povo. E isso nos faz refletir sobre a desigualdade social em nosso país, já que a narrativa de Javé reproduz a história de um dos tantos grupos oprimidos.

Ainda mais um aspecto interessante do filme é a variedade linguística do Português. O modo de falar dos personagens, as expressões utilizadas por eles, evidenciam as variações dialetais e as variações de registro que revelam todo um conjunto de informações sobre os personagens e nos envolvem e nos fazem identificar com o mundo vivido por eles.

Uma coisa é coisa acontecida. Outra é coisa escrita. O escrito melhora o acontecido. Com mais este dizer de Biá podemos perceber o papel e o poder que lhe é outorgado, na medida em que passa a ser o escritor. Fiquei pensando, agora que escrevo sobre o filme, no poder que se abre a um memorialista, por exemplo, quando ouve as palavras do personagem e entrevistado e cria, no seu escrito, o que chamamos de memórias literárias: um misto e amalgamado de realidade e ficção que se forjam numa só linha e entrelinha, para dar sentido, significância e beleza.

Poderíamos nos perguntar, diante de quaisquer versões apresentadas de um único fato ou história: qual delas é a que vale?Mais ainda: qual das culturas é a melhor?Em qual das religiões Deus é mais verdadeiro?

Penso eu que sempre nos deparamos com uma situação similar à dos narradores de Javé,
tentado salvar o que somos, destacar a nossa glória e a nossa luta frente ao que nos é valoroso. Sempre estamos tentando salvar o sino que brada a nossa voz e guarda simbolicamente as marcas da História para ser novamente inaugurado em um novo lugar.

(Antonio Gil Neto)

[Publicado em: 23/07/2009, no blog da Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro (Olimpíadas de Língua Portuguesa) http://escrevendo.cenpec.org.br]

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